O CÃO NOSSO DE CADA DIA

Eu não fui criada com animais em casa, salvo galinhas e pintinhos, que ganhavam nome, como costuma acontecer com gatos e cachorros, e o carinho de todas as crianças da casa e vizinhas - chegávamos a reconhecer a personalidade de cada um deles, a ponto de mais de quarenta anos depois eu ainda me lembrar do Cristinha, que não morreu sem deixar minha mãe traumatizada a ponto de nunca mais matar galinha/frango. Ele era um franguinho grande e valente, e nós já o víamos como um galo ante os outros, daí o nome Cristinha. Minha mãe era acostumada a criar galinhas para comer, e eu e meus irmãos às vezes até ajudávamos a depenar, coisa corriqueira em famílias do interior, que têm o privilégio de um quintal de terra, um galinheiro e muito barulho nos puleiros. Mas o Cristinha - ah, mãe, ele não! Ele era tão especial, que Dona Jurema teve de fechar a porta da cozinha para conseguir matá-lo, já que a criançada toda implorava para que ela o poupasse; mas não adiantou muito, porque nós - criançada bonita - ficamos do outro lado da porta batendo e gritando: não mate o Cristinha, dona Jurema, o Cristinha não! Mas ela foi insensível, num primeiro momento, e teve o resto da vida para se arrepender: o corpo do Cristinha, sem cabeça, ainda deu alguns passos pela cozinha, e Dona Jurema, com a cabeça do frango na mão, viu-se desesperada diante daquela cena esquisita, pensando que era castigo dos céus porque não ouviu as crianças. Foi quando ela prometeu nunca mais matar galinhas e nosso galinheiro foi tomando o rumo do fim. Depois disso, poucas vezes convivi com animais. Um namorado meu tinha um gato, que eu achei no meio da rua, atropelado, e morreu nos meus braços. Eu me lembro que foi muito triste, mas não me lembro de ter passado muito tempo pensando nisso. Ah, mas depois de muitos anos, descobri a alegria e o amor especial dos cachorros! Como eles podem ser tão lindos? Tive o privilégio de ter o Tom em minha vida e aprendi demais nessa convivência, aprendi em especial um tipo de amor muito genuíno e leve. Ele não está mais comigo, por um milhão de motivos reais e realmente relevantes, mas eu não passo um só dia sem pensar nele, e às vezes choro de saudade, mesmo sabendo que ele está muito melhor agora, correndo num quintal com muitos amiguinhos. Mas hoje algo muito forte me fez pensar nele: soube da morte do Pingo, cachorro lindo e querido da minha prima Rosana,que lá no litoral norte da Bahia era um grande companheiro nas caminhadas à praia. Eu me lembro da alegria dele nadando no rio, tão feliz, e penso que esses seres vieram ao mundo para nos ensinar a alegria mais simples de estar no mundo e usufruir da interação com a natureza, com a vida em forma plena. Meu coração está confuso: ao mesmo tempo em que me entristeço porque nunca mais vou ver o Pingo, penso no Tom fora de um apartamento, feliz a correr num quintal, e me sinto egoísta de pensar como seria bom tê-lo aqui no meu apartamento de novo, sentadinho no meu pé ou no meu colo. Pingo era feliz naquela imensidão de liberdade baiana, e Tom ainda tem essa chance de ser mais livre, de ter mais espaço e amigos. Pingo tem a liberdade de um ser que já não precisa de um corpo, que no fundo é só um ponto de dor. Meu Deus, por que ainda somos tão limitados e não conseguimos ser livres como os cães? Quero que meu coração se liberte do apego e da saudade. Precisam ir? Deixo-os andar! É assim que quero ser, embora isso ainda seja um sonho de aprendizado e eu esteja aqui agora, com o coração apertadinho.

Esther Alcântara


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