AMOR PLATÔNICO LÍQUIDO

Da Ana Rosa à Vila Prudente, ele foi sentado bem à minha frente. Já estava lá, quando me sentei e... Parei! Fiquei sem ar por uns segundos, observando a barba, o nariz e os ângulos do rosto tão másculos... Gente, um homem lindo! Imaginei uma paqueradinha despretensiosa pra fechar bem à noite, daquelas de olhares furtivos e quentes, de gosto não gosto, dessas coisas que acho que estão ficando obsoletas (concluí depois). Ele também levava uns livros, pra completar a perfeição. Olhei primeiro de leve, e nada. Olhei melhor depois todos esses detalhes que descrevi acima com meu binóculo imaginário, macro, olho de peixe... Nada. Pensei num jeito de lhe chamar a atenção. Já sei, o metrô tá vazio mesmo, então vou cantar, como quem está distraída. Estava voltando do ensaio do coral, então peguei uma das partituras para fazer tipo de musicista superprofissional e interessante, não de maluca sem noção de espaço. Cantarolei "Amazing grace" e ele ainda não olhou. Pensei em Deus. Será que é blasfêmia cantar a graça divina olhando a graça masculina? Podia ser castigo. Mas logo imaginei que Deus tinha mais o que fazer e nem estava vendo, ou que sabia muito bem contextualizar, já que é onipresente e onisciente, e já tinha me perdoado. Quatro pentagramas desafinados depois, nada! Ele não mexeu um cílio para me olhar ou me ouvir, atento ao celular. Aí me dei conta de que desperdicei meu pretenso talento, porque ele usava fone de ouvido. Entrou outro moço e foi com a gente no metrô por duas estações. Sentou de lado para o lindo, mas virava de frente para olhá-lo também. Percebi ter arrumado concorrente, mas ele também não fora bem-sucedido. Assim que me vi sozinha com o bonito de novo, apelei. Peguei um batom vermelho novinho na bolsa, meu espelhinho chique com ar imperial, e longamente pintei os lábios. Está aí uma coisa que sempre me deixou constrangida - o olhar dos homens quando a gente passa batom na frente deles no busão ou no metrô; se preciso, passo batom discretamente, fico quase invisível. Mas desta vez eu fiz bocão com meus lábios finos, passei mil e uma camadas e... Adivinham? Nada! Ele continuou olhando para o celular. Péinnnn... Próxima estação, Vila Prudente. Levantei e tentei sair junto, mas acho que nem que eu lhe desse um esbarrão de derrubar ele derrubaria os olhos do celular. Tudo bem se ele tivesse olhado pra mim e feito ar de desdém, do tipo "não gostei de você". Mas ele nem me viu, não fez nada, o que é pior. Significa que investi várias estações do meu tempo em um amor platônico. Tempo precioso, tempo líquido. E fui liquidada pela tecnologia, nocauteada! Ainda subi a escada rolante paralela à dele praticando a força da mente: "olha pra mim, lindo!". 
Só para constatar que nisso também sou fraquinha.
 ;)
Esther Alcântara

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