ACABAMENTO

Nunca gostei de nada arrumado demais. Cabelo muito arrumado no dia a dia, daqueles que nenhum fio sai do lugar, sempre me transmitiram alguma tristeza; penso que faltou tomar chuva, sol, vento... viver. 

Assim é também com a casa, que gosto bem arrumada, mas sem ares de loja ou revista de decoração. Preciso ver algumas coisas fora do lugar - um livro aberto, um quadro torto, uma poeirinha num canto, o pelo ou o pulo do gato - para sentir-me à vontade e aconchegada; preciso ver algo de pessoal, que muda de lugar ou forma como a pessoa. Casa, para ser lar, tem de ter um toque de uso, algum sinal de que ali se vive e se curte as coisas triviais, qualquer sinal de presença. 

Também não gosto de ver agenda (escrita ou pensada) com todos os deveres cumpridos. Assusta-me a falta de falha, de lacuna.  Como chegar ao dia seguinte sem o desafio de encaixar uma pendência ou, quem sabe, a ousadia de jogá-la para o alto sem culpa nem desculpa? Como planejar tantos dias previamente e gostar do dever de nada ficar devendo? 

Preciso de uma dose de desarranjo para encontrar harmonia entre o que sou e o que posso ser, entre o que já vivo e o que posso viver. Só vejo a possibilidade de criar - e preciso criar - quando posso ver bem vivos os cabelos, as paredes e os dias. 

Não nasci formatada e nunca aceitei ser formatada. Sou dona das minhas edições e cuido para que os pitacos, mesmo os indiretos, não me engessem; quero estar sempre disposta a uma nova e melhorada versão de mim. 

Estar pronta e arrumada é estar finalizada; estar viva é aceitar que sempre é preciso algum acabamento.


Esther Alcântara

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